Atualizado em: 28/05/2025 – 11:05:01
Autora: Luisa Severino Itabayana / Nº da OAB/MG 187.190
Coautora: Ana Beatriz Rodrigues Porfírio*
O direito à saúde, garantido pela Constituição Federal de 1988 (art. 196), é um princípio fundamental: “A saúde é direito de todos e dever do Estado”. Contudo, para a população LGBTQIAPN+, esse direito enfrenta barreiras estruturais e simbólicas derivadas de práticas discriminatórias.
No mês de maio, mais precisamente no dia 17, celebra-se o Dia Internacional da Luta contra a LGBTfobia, data que marca a retirada da homossexualidade do Código Internacional de Doenças (CID) pela Organização Mundial de Saúde (OMS), em 1990. Esse marco simboliza resistência e nos convida a refletir sobre a construção de um sistema de saúde verdadeiramente universal e inclusivo.
Embora o tema seja amplamente discutido, ainda há dúvidas sobre o que significa ser LGBTQIAPN+. A sigla é um acrônimo que representa Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Travestis, Queers, Intersexo, Assexuais, Pansexuais, Não Binárias e de outras identidades. Porém, ser LGBTQIAPN+ é muito mais do que apenas se identificar com uma sigla. O gênero, da forma que o conhecemos atualmente, é uma construção social que se modificou ao longo do tempo, reconhecendo o gênero e a sexualidade como categorias sociais moldadas historicamente.
Até o século XVIII, a distinção entre os sexos era pouco definida, sendo o gênero atribuído mais por fatores socioculturais do que biológicos. A sexualidade, por sua vez, foi historicamente regulada por normas morais e religiosas. Até 1990, a homossexualidade era classificada como “homossexualismo”, termo patologizante, contraposto à heterossexualidade tida como norma.
Nesse cenário, é de grande relevância compreender a luta enfrentada pela população LGBTQIAPN+, sendo marcada por exclusão e hostilidade que, muitas vezes, acabam suprimindo dessas pessoas direitos que deveriam ser assegurados a todos como fundamentais.
A LGBTfobia é o termo que abrange todas as formas de preconceito, discriminação e violência; ganhando contornos institucionais quando praticada em empresas privadas e órgãos públicos.
Caracteriza-se por práticas como omissão, negligência e desrespeito no serviço público. Além disso, muitas manifestações não estão tipificadas no Código Penal, mas são representadas em crimes de ódio, associados não apenas a uma suposta rejeição irracional a relações homoafetivas, mas a um comportamento perverso de desqualificação da humanidade deste outro. Assim, defender os direitos LGBT é também defender o direito à dignidade da pessoa humana.
O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), aliada aos direitos à igualdade (art. 5º, caput) e à saúde (arts. 6º e 196), fundamentam a obrigação estatal de promover políticas que atendam às pessoas historicamente marginalizadas, como a população LGBTQIAPN+.
Avaliando as políticas sociais voltadas ao público LGBTQIAPN+, a saúde se destaca como uma das áreas pioneiras na execução de ações voltadas para essa população no Brasil. É importante lembrar que o Sistema Único de Saúde (SUS), criado pela Constituição Federal de 1988, e oficializado em 1990 pela Lei 8.080, tem como princípios a universalidade, a integralidade e a equidade no acesso à saúde. E, por conta disso, tem um importante papel nesse contexto, buscando garantir um cuidado que considere suas especificidades e enfrente as desigualdades historicamente construídas, almejando sempre o aprimoramento, a ampliação e a universalidade dos atendimentos e serviços.
O movimento para assegurar políticas públicas voltadas à população LGBTQIAPN+ é antigo, mas apenas em 2011 visualiza-se um progresso efetivo, que ocorre por meio do SUS ao ser instituída a Política Nacional de Saúde Integral LGBT (Portaria nº 2.836/2011), abordando os determinantes sociais da saúde dessa população, com foco na equidade e acolhimento sem discriminação. Em 2020, Minas Gerais adotou política similar (Resolução CIB-SUS/MG nº 3.202), reforçando ações de humanização, capacitação profissional e financiamento estadual.
A Portaria nº 2.803/2013 redefiniu o Processo Transexualizador no SUS, assegurando atendimento multiprofissional e assistência integral. Hoje, o Brasil conta com 21 (vinte e uma) unidades habilitadas para esse processo, sendo três dessas unidades localizadas em Minas Gerais: Juiz de Fora, Uberlândia e Belo Horizonte, todas com atendimento ambulatorial.
O desafio para a área da saúde vai muito além de tratar doenças, sendo também responsável por produzir e difundir conhecimento, possibilitando uma adesão social na promoção da saúde, atenção e cuidado, assegurando que todos os envolvidos, membros ou não da população LGBTQIAPN+, sejam respeitados, com a devida inclusão da identidade de gênero e orientação sexual nos prontuários, além da utilização do nome social. Além disso, o serviço de saúde deve também reconhecer os direitos sexuais e reprodutivos de seus pacientes com a difusão de ações preventivas contra Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs).
Ao se falar de diversidade e inclusão no âmbito da saúde pública de Minas Gerais, é natural se interessar pelas ações que são adotadas pelo maior hospital do Brasil em número de internações, a Santa Casa BH. Desde 2022, a instituição tem reforçado sua atuação nas áreas de direitos humanos, ética e de integridade por meio do Programa de Diversidade e Inclusão, voltado para cinco grupos de afinidades, quais sejam: pessoas com deficiência (PCD), raça e etnia, LGBTQIAPN+, equidade de gênero e gerações.
O grupo de trabalho ligado à população LGBTQIAPN+ é composto por membros voluntários que fazem parte do quadro de funcionários da instituição, sendo integrado por pessoas que possuem lugar de fala e aliados. O grupo também realiza encontros mensais para discutir melhorias que podem ser implementadas e difundidas.
Além disso, a Santa Casa BH é o primeiro hospital no território nacional, na categoria 100% SUS, a aderir ao pacto da ONU com os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Essa atitude reafirma a posição da instituição em prol de um mundo melhor, buscando implementar diversas ações para diminuir o preconceito, sobretudo pelas barreiras enfrentadas pela população LGBTQIAPN+ e estimular a diversidade em sua plenitude.
A instituição já atua utilizando o nome social, não só dos pacientes, seguindo as orientações dos órgãos governamentais da saúde e estatais (Decreto 8.727/2016), mas também de seus colaboradores, independentemente da alteração/retificação no registro civil, mediante simples solicitação do interessado.
Além disso, a Santa Casa BH oferece vagas afirmativas para pessoas trans, refugiadas e com deficiência, acompanhadas por treinamentos destinados às equipes de acolhimento. Entre os materiais de apoio, destaca-se o Glossário Consciente e a Cartilha de Atendimento Inclusiva, que promovem uma linguagem respeitosa e boas práticas no atendimento à população LGBTQIAPN+.
A Santa Casa BH também apoia iniciativas sociais, como a do Centro de Luta pela Livre Orientação Sexual de Minas Gerais (Cellos-MG), e participa ativamente da Parada do Orgulho LGBTQIAPN+ de Belo Horizonte, levando informação e orientações sobre cuidados com a saúde e prevenção de ISTs por meio de uma interação acolhedora, sensível e proativa.
Para além do campo do cuidado clínico/assistencial, a Santa Casa BH entende que a valorização da diversidade passa pelo respeito às diferenças e à equidade da população LGBTQIAPN+, e esses princípios devem permear todas as relações institucionais, onde se busca cada vez mais incluir os indivíduos que, muitas vezes, são excluídos da sociedade para que, juntos, seja possível construir um espaço plural e focado em oferecer uma saúde de ponta para todos.
Refletir sobre as lutas da população LGBTQIAPN+ no campo da saúde exige o reconhecimento da urgência por ações concretas que assegurem o acesso equitativo, integral e humanizado aos serviços do Sistema Único de Saúde (SUS).A promoção do direito à saúde dessa população demanda o fortalecimento de políticas públicas inclusivas, a formação contínua dos profissionais da área e o enfrentamento das desigualdades estruturais que historicamente contribuem para a exclusão e a vulnerabilização dessa população. Reafirmar esse compromisso é, portanto, reafirmar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da igualdade e da universalidade do acesso à saúde.
*Observação: o texto teve coautoria da estagiária Ana Beatriz Rodrigues Porfírio, que se desligou da Santa Casa BH no mês de março/2025.
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Referências:
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